Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces, e nada mais
I don't care where you bury my body
When I'm dead and gone
Já faz algum tempo que vez ou outra me pego refletindo sobre a semelhança (e as diferenças - enfim, a relação) entre o blues e o samba. Acho que é uma analogia mais ou menos óbvia, partindo-se do princípio que, normalmente, o leigo, ao pensar em música brasileira, pensa em samba, e, ao pensar em música americana, pensa em jazz/blues (coisa que o leigo brasileiro não sabe diferenciar - nem faz idéia, na verdade, como pude comprovar nas primeiras sinopses do filme Black Snake Moan, que, se for pra frente, vai ganhar um post aqui).
Entretanto, o que eu proponho é uma apreciação um pouco mais detalhada dessa relação. Para tanto, é necessário compreender alguns aspectos destes estilos e dos contextos nos quais eles se desenvolveram (e continuam se desenvolvendo). Vale lembrar que este post não pretende esgotar o assunto, de maneira alguma, servindo, talvez, como base para introduzir uma reflexão, de maneira a demonstrar as paridades existentes entre estes dois estilos, que, por sinal, são por demais apreciados pelos dois colaboradores deste blog.
O primeiro ponto que naturalmente salta aos olhos é o fato de que ambos os estilos são música negra. Isto significa, é música feita, principalmente, pelos negros descendentes dos escravos trazidos da África para a América. Isto é verdade, em grande parte.
O samba, conforme pudemos notar no post do Renato abaixo deste, origina-se em estilos trazidos da África, mesclados, em certa medida, à música "branca" que encontraram no Brasil.
O blues, por sua vez, vem dos hollers, os cantos entoados nas plantations do delta do Mississipi pelos escravos. Estes cantos têm suas raízes fincadas na África, como podemos notar, por exemplo, no fato de utilizarem a escala pentatônica (das sete notas musicais, apenas cinco são usadas), com a "distorção" que é a blue note (ao passo que a música "careta", "branca", usa a escala convencional, de maneira predominante). Ao chegar à América, estes elementos se juntam, por exemplo, a instrumentos que têm sua origem na Europa e na sociedade "branca", como o violão e a gaita.
Podemos verificar, também, logo neste princípio dos dois estilos (praticamente contemporâneos, por sinal), uma diferença fundamental: o samba tem sua gênese no âmbito urbano, e vai se distanciando um pouco do centro da cidade, na medida em que sobe o morro, no início do século XX. No entanto, ele nunca deixa de ser um estilo de música urbano. O blues, em contrapartida, se origina nas plantações, é música que tem seu nascimento no âmbito rural, para depois, sim, chegar à cidade.
Podemos, também, pensar de uma maneira mais geral, de uma perspectiva contemporânea, como quem observa a penetração destes dois estilos na formação musical de seus países. O samba é identificado, de certa maneira, como "o" estilo de música brasileira, embora isso não possa ser generalizado dessa maneira. A colonização brasileira se deu de maneira "ganglionar", como se costuma dizer: pequenas ilhas que se conectavam somente com o exterior, com a metrópole portuguesa. Dessa forma, existem vários "Brasis", e a diversidade cultural que temos é gritante. Entretanto, a penetração do samba é superior à das demais músicas regionais, por razões que, honestamente, me fogem, sobre as quais posso apenas especular. E é neste campo de especulação que acredito que o samba foi favorecido por ser originado no Rio de Janeiro. Desta forma, quando os meios de comunicação (rádio, e, posteriormente, a TV) se expandiram no Brasil, a música difundida por eles era, principalmente, de música fortemente influenciada pelo samba (a "MPB", tropicália, Bossa Nova, etc.). Agora deixe-me falar um pouco sobre a influência do samba sobre estes estilos que ajudaram a "popularizá-lo" como "o" estilo de música brasileira.
O samba é música com pulsação em straight, em 2/4, com batida que é notada em quase tudo que é tido como "música brasileira", especialmente em um certo período (excetuando-se coisas muito específicas, como o rock nacional, ou o funk - falo de Tim Maia, não de Deise Tigrona). A batida (de violão) da bossa nova, por exemplo, imortalizada por João Gilberto, é uma batida de samba. A questão de ser em 2/4... Muito da chamada "MPB" dos anos 60 a 80, a própria bossa nova, muito disso é em 2/4, e usa essa batida de samba. Até os instrumentos típicos do samba (a bem da verdade, muito comuns ao choro, também) são encontrados nestas músicas posteriores.
O blues funciona de forma parecida. A batida 4/4 com pulsação em swing do blues foi a deixa para a gênese do rock n' roll, seu filho mais importante. E é público e notório que o rock é o estilo de música mais conhecido e difundido mundo afora. As pentatônicas do blues, a questão da "ambigüidade" de se usar escalas menores (pentatônica menor) em tons maiores, tudo o que o rock herdou do blues. Sem falar em coisas mais óbvias aos leigos. Os grandes baluartes da guitarra elétrica (instrumento, aliás, também, de certa maneira, herdado do blues) dos primórdios do rock n' roll foram todos fortemente influenciados pelo blues, quando não eram, eles mesmos, blueseiros, de certa maneira (Hendrix, Chuck Berry, Jimmy Page, Eric Clapton...).
A diferença aí talvez resida no fato de que o samba me parece muito mais popular no Brasil que o blues nos EUA - parte da explicação deste fato talvez resida nos desfiles de escolas de samba, enfim, na associação do samba com o carnaval. De qualquer maneira, tanto lá como cá, são estilos ainda estigmatizados, de certa maneira, por conta de suas origens negras e marginais ("marginal", com o sentido de estar à margem, não no sentido de ser criminoso, pelamordedeus).
Por fim, cabe examinar um pouco as letras. O blues trata, principalmente (em especial, em seus primórdios), de temas pesados (mas, algumas vezes, de maneira leve), como morte, separação, traição, álcool, o diabo, etc. Podemos dizer que o tema mais básico do blues é o lamento do bluesman por sua amada, que morreu (alguém falou em Death Letter?) ou foi embora. O samba também trata de temas cotidianos, embora tenda a ser mais leve. Muitos sambas, também, tratam de exaltar comunidades específicas (Feitiço da Vila, Folhas Secas, Foi um Rio que Passou em Minha Vida, dentre outros, para ficar só nos mais famosos), e alguns são até engraçados. Entretanto, é impossível não pensar no blues quando ouvimos, por exemplo, as pesadas e sombrias letras de Nelson Cavaquinho:
As rugas fizeram residência no meu rosto; Não choro pra ninguém me ver sofrer de desgosto
Sempre só, e a vida vai seguindo assim;
Não tenho quem tem dó de mim;
Estou chegando ao fim
Mesmo Cartola, figura comumente associada à Mangueira, que é comumente associada ao carnaval, era um mestre em letras sombrias, parte importante de sua obra:
Um vazio se faz em meu peito,
E de fato eu sinto
Em meu peito um vazio;
E faltando as tuas carícias,
As noites são longas
E eu sinto mais frio
Sou um pouco suspeito pra falar, já que eu tenho uma espécie de teoria que diz que uma música bonita sempre tem, no mínimo, um certo quê de tristeza, embora não somente músicas tristes sejam bonitas. Fato é que, se essa melancolia no blues é regra, no samba não chega a ser exceção, e, se pararmos pra pensar, os núcleos humanos nos quais desenvolveram-se os estilos tinham de fato, muito a lamentar. Eram aqueles que estavam à margem da sociedade, e que, mesmo assim, tinham alegria em poder cantar seus demônios, até como uma maneira de exorcizá-los (aliás, eis aqui uma espécie de "princípio" do blues), mesmo sendo estes demônios nem sempre próprios das classes oprimidas, mas sim, coisas que afetam a alma de qualquer ser humano (a angústia da velhice, da morte, da perda da amada, etc.).
Enfim, o post já está longo o suficiente, e vago o suficiente, também, mas, como supracitado, não pretendia esgotar e nem mesmo fazer um grande desenvolvimento do assunto, apenas ressaltar alguns pontos sobre os quais já refleti e sigo refletindo, às vezes, e que acredito que valham de alguma maneira a atenção.